Por Marcia Rangel Candido¹
Inventores devem não só possuir plena liberdade para exercerem seus
poderes, mas também deve haver certa acolhida e proteção a suas ideias.
Privada, como a mulher é, de poder político, ela tem que enfrentar o
desprezo ao seu sexo, o escárnio aberto e encoberto da feminilidade, alusões
depreciativas a seus poderes intelectuais – tudo tendendo a dificultar a
expressão de seu gênio inventivo² .
Matilda Joslyn Gage, 1883
Apropriação de ideias, assédio moral, oportunidades desiguais e tantas outras questões
atravessam a história de escritoras do passado ao presente. Superar esses obstáculos, no
entanto, não as protege de um golpe mais duro: o esquecimento. Embora a difusão do feminismo nas universidades e nos meios de comunicação tenha contribuído para que o mercado editorial dedique mais atenção a publicações de (e sobre) mulheres, dois fatores ainda chamam atenção. Por um lado, o reconhecimento do trabalho intelectual feminino costuma ser explicitamente segregado. Não raro encontramos mesas separadas em livrarias com a chamada “leia mulheres”. Fruto de confrontos e questionamentos da luta feminista, esse lugar apartado é ambivalente pois também serve para lembrar nossa marginalização: é necessário um tipo de “grito” para que o público enxergue que as mulheres produzem conhecimentos substantivos e que participam de ambientes de legitimação.
Por outro lado, até mesmo as feministas – aquelas que têm “olhares treinados” às desigualdades – frequentemente não fazem referência, não leem e tampouco conhecem
textos de autoras clássicas. Entender uma intelectual como “clássica” significa discernir
que, além de distanciadas por um espaço de tempo longevo, certas escritoras foram
pioneiras em desenvolver ideias, demarcar campos de pesquisa e influenciar debates
públicos. A importância de leituras assim decorre não só em identificar permanências
no quadro de opressões às mulheres, mas também em apreender a história como um
processo de longa duração, cujas conquistas e direitos experimentados em determinados
momentos são frutos de extensa articulação e mobilização.
Constatar que as autoras clássicas são potencialmente invisibilizadas não significa,
contudo, naturalizar esse contexto e supor que ele é derivado de decisões individuais
livres. As pessoas que realizam formação na área de humanas, por exemplo, precisam
dar conta de extensa literatura “obrigatória” que não incorpora escritos de mulheres,
desse ou de outros séculos. O mero esforço de transpor essa barreira encaminha leitoras
e leitores ao que é produzido no momento atual e tem mais notoriedade, distante das
autoras clássicas que não circulam, não são traduzidas e muito menos editadas.
Como mudar isso? Quais caminhos podemos seguir para entrar em contato com um
mundo pouco acessível? As autoras clássicas estão mesmo tão inatingíveis? Eu descobri
que não. Outras pessoas também. E, na realidade, temos aprendido juntas. Ainda que
grande parte das mulheres que encararam a escrita como profissão, tal como os homens,
tenham legado uma extensa produção literária, é quase sempre possível encontrar
ensaios, contos, crônicas e artigos analíticos sintéticos que contribuem para um
“primeiro encontro” com ideias precursoras e reflexões sensíveis sobre a realidade.
Dois casos me marcaram nos últimos anos por seu perspicaz conteúdo em tão poucas
páginas: Os porcos de Julia Lopes de Almeida e O Papel de Parede Amarelo de Charlotte Perkins Gilman. Em 2017, a pesquisa de Michele Asmar Fanini fez os jornais brasileiros reviverem a figura de Julia Lopes de Almeida, escritora mais publicada na Primeira República e que participou da formação da Academia Brasileira de Letras (ABL). Nascida em 1862, a “clássica” logrou êxitos em meio a um cenário editorial profundamente adverso às mulheres, mas não chegou a ser consagrada na história do país como uma grande figura literária. Para conhecer parte do seu trabalho arrebatador não é necessário dispêndio exaustivo de tempo: procurem Os porcos. Ao longo de cinco breves laudas, a violência patriarcal, a moral, os costumes e as ambivalências em torno da maternidade são surpreendentemente abordadas .
Charlotte Perkins Gilman, por sua vez, representa em O Papel de Parede Amarelo,
texto de 1891, um retrato diferenciado de aspectos que compõem grande parte de sua
obra. Militante do movimento feminista estadunidense, palestrante em universidades e
referência em estudos sociológicos sobre, dentre outras coisas, o papel desempenhado
pelas mulheres na economia, Gilman disserta de forma perturbadora sobre a construção
da racionalidade como algo próprio a figuras masculinas, enquanto as mulheres são
enclausuradas como seres dóceis e incapazes de atividade reflexiva.
Não serem capazes. Não serem nomeadas. Não serem editadas. Não serem traduzidas.
Não serem legitimadas. Desses limites superáveis (e às vezes superados), o de não ser
lida é, afinal, o pior de todos. As pequenas grandes leituras podem, portanto, nos levar a
saudar uma dívida com aquelas que nos antecederam e abrir as portas a um complexo e
interminável caminho de aprendizado. Passado, presente e futuro: leiam mulheres!
NOTAS E REFERÊNCIAS:
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