<<Então, quando as tem todas abraçadas, diz-lhes:
“Alguma vez chegaram a pensar que a poesia podia ter forma tão concreta?”>>
O livro “Las Malas”, publicado na Argentina em 2019 pela atriz e escritora Camila Sosa Villada, chegou ao Brasil este ano (texto escrito em 2021) pela Planeta de Livros, sob o título de “O Parque das Irmãs Magnificas”. Antes mesmo de saber ou procurar sobre o livro, eu o vi diversas vezes pelo feed do Instagram. Muitas escritoras das quais eu admiro recomendavam o romance. Até que eu li a resenha da Amara Moira, na Quatro Cinco Um, “Um ano travesti equivale a sete anos humanos” e passei o último domingo em uma leitura feroz e incansável do livro. “O Parque das Irmãs Magníficas” é um romance, uma autobiografia mesclada com realismo mágico: nos conta de uma travesti com 168 anos, a Tia Encarnada, considerada como uma mãe, até Maria, a mulher-pássaro.
Camila Sosa narra como chegou a Córdoba para estudar Comunicação. Seu destino havia sido ditado pelo pai: vai ser encontrada morta ou vai acabar na prostituição. Ela então, vai nos contando sobre sua vida universitária e sua vida noturna, a qual encontrou acolhimento e trabalho no Parque Sarmiento, e “como as árvores que nascem solitárias”, ali ficou. Mas sua solidão e suas dores foram compartilhadas com as travestis que ali trabalhavam. Juntas viveram situações de extrema violência, de dor, de prazer e de festa.
“A primeira coisa que ouvi Angie dizer foi: “Virei travesti porque ser travesti é uma festa”.”
Eu sou uma mulher cis. Entendo os privilégios da minha cisgeneridade, as construções da minha feminilidade. Mas a minha feminilidade talvez nunca tenha sido o suficiente, porque eu sou uma mulher gorda. E eu sei da minha solidão enquanto uma corpa não desejada, uma corpa que não recebe afeto. Sempre encontrei nos caminhos da minha vida outras corpas que de certo modo também eram colocadas como insuficientes para essa feminilidade e desvalorizadas nesse grande mercado afetivo e amoroso. Conheci a minha melhor amiga e amante aos 16 anos de idade, e digo amante, porque por um certo tempo vivi perdidamente apaixonada por ela e tudo o que criavamos juntas. Ela estava no começo da transição, no começo de entender sua identidade latina e travesti. Viajamos juntas pelas estradas, literalmente, pedindo carona na BR. Juntas vivemos e criamos canções, poemas, rituais de tarot, vivemos a dor e a delícia de sermos jovens e loucas, na medida em que nossos corpos eram aceitos. Uma travesti e uma gorda entram num bar, era a esquete-sem-graça da nossa vida.“Para sempre eremitas”, era o que dizíamos uma para a outra. E nessa andanças pela vida, me mudei muitas vezes de cidade, tal qual uma eremita. Mas meu caminho sempre foi encontrar as amigues mais incríveis e artistas, todes tão singulares em suas criações mágicas. Todes carregavam a dor de existir em um mundo que não nos cabe.
Eu conheci a Súcia antes mesmo de conhecê-la pessoalmente. Amigues em comum diziam que íamos nos dar super bem, porque Sucia era da mesma região que a minha: ambas do Mato Grosso do Sul, esse estado que mais mata indígenas no Brasil, esse estado aglomerado por agroboys e suas caminhonetes altas demais para se olhar para quem quer que seja. Eu já sabia que Sucia era uma artista. Ela realizava performances nas cidades do interior do Mato Grosso do Sul, saindo ao centro da cidade de salto alto, deixando as senhorinhas e a toda a família tradicional pantaneira em choque. Ela mesma me mostrou as fotografias de suas performances e eu lembro de ter ficado impactada com a força daquelas imagens. Súcia vivia com suas produções naturais, seus shampoos e condicionadores extraídos de ervas e plantas. Súcia era uma bruxona e sabia lidar com aquilo que quase todo mundo ignora, que são o poder das plantas medicinais. Estive mais perto de Súcia quando fui para a Mansión 108, em Assuncion, em Julho de 2017. Nesta casa, que era como um paraíso fora do mundo heteronormativo, tomamos vinhos e conversamos sobre muitas coisas. E eu não sei explicar o que é essa troca tão íntima e afetuosa que temos sempre uma com a outra… Sinto que muitas vezes todas nós, fora dos padrões, carregamos no coração uma chama de amor tão grande, que talvez seja como desejamos ser amadas em nossas ficções sobre o amor romântico, mas no final, todo esse amor verdadeiro só existe entre nós mesmas. Mas enfim, um ano depois, Súcia veio passar um tempo na minha casa, em Foz do Iguaçu, com um companheire muito querido e outra amiga muito querida, a artista Kira Xonorika. Vivemos alguns dias ali, cozinhando juntes, enfeitando a mesa onde fazíamos refeições, rindo, brincando, bebendo vinho, acendendo fogueiras e dividindo a mesma cama. Não me esqueço do dia que fizemos um balde de pipoca, preparamos um mate e nos sentamos a mesa: uma gorda, três travestis, dois homens trans. Nossa grande Santa Ceia de bruxas inámáveis e monstruosas, que com certeza não virariam um quadro pendurado em uma sala familiar. E como nos divertimos nesse dia… E escrevemos um poema coletivo, onde a folha ia passando de mão em mão para que cada uma escrevesse uma frase. E não seria isso a forma mais concreta de um poema?
Súcia foi embora uma semana depois, acredito que ela estava voltando ao Paraguay na época. Deixou pela casa diversos desenhos, os quais colamos pelas paredes e outros que guardo com muito carinho até hoje. Com elas eu aprendi ainda mais sobre todas as formas de desamores, mas sobretudo, de afetividades. Da nossa afetividade coletiva, daquilo que nos aproximava, a nossa alegria-triste. Volto então ao Parque das Irmãs Magníficas, escrito por uma travesti, que nos leva a conhecer não só o seu mundo, mas o de todas as suas amigas travestis que fizeram parte dele. E percebemos para além da solidão, para além das violências, as vidas que se vivem mútuas em momentos onde o cuidado é tudo. O meu desejo é ler mais e mais histórias com personagens travestis, mais e mais livros e mais literatura travesti, até que todas as vidas sejam eternizadas.
Súcia hoje está no céu das travestis, e termino então com mais um trecho do livro:
“O céu das travestis deve ser belo como as paisagens deslumbrantes da recordação, um lugar para passar a eternidade sem se entediar.”



créditos capa: paula cruz
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