Por Verônica Kelly Gomes Silva*
Francisca Senhorinha da Motta Diniz nasceu na cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais, em meados do século XIX. A mineira foi jornalista, escritora e educadora. Em 1873 fundou o semanário O Sexo Feminino, um dos primeiros periódicos a tratar da emancipação da mulher. O Sexo Feminino versava sobre temas como a educação feminina e o direito ao voto. Com a Proclamação da República, o jornal passou a se chamar O Quinze de Novembro do Sexo Feminino.
É importante frisar que essa não foi sua primeira incursão no mundo jornalístico. Francisca já atuava como jornalista, escrevendo para o jornal A Estação – ela também colaborou com os jornais A Primavera e A Voz da Verdade. A autora atuou como professora por algum tempo e em 1890, após a morte do marido, fundou a Escola Doméstica do Liceu Santa Izabel – o qual dirigiu com o auxílio das filhas, Albertina e Elisa Diniz. A autora faleceu em 1910, no Rio de Janeiro. A judia Rachel, seu único romance, foi publicado no Rio de Janeiro, em 1886. O livro foi escrito em colaboração com sua filha, Albertina Diniz. Até o momento, não conta com reedições.
A produção jornalística e literária de Francisca Senhorinha da Motta Diniz tem despertado o interesse acadêmico nos últimos anos – consequência do resgate que tem sido feito pela crítica feminista de obras e autoras ignoradas ou esquecidas pela historiografia literária. Boa parte dos estudos acerca da autora focam mais a sua produção jornalística – mais expressiva do que sua produção literária. Zahidé Muzart (2008, p. 299) classifica o romance de Francisca Senhorinha como um romance “de aprendizagem”, no sentido de que a obra é um exercício de aprendizagem do ofício da escrita.
O romance é dividido em duas partes. Boa parte da ação é ambientada no Egito, Turquia e Jerusalém. O pano de fundo são as disputas entre cristãos e árabes pelo controle da Terra Santa – em determinado momento, a Sexta Cruzada (1228-1229) é deflagrada e alguns personagens devem partir para lutar. A narração alterna entre a terceira pessoa do singular e a segunda do plural. O narrador onisciente tem acesso à consciência dos personagens e dá conta de múltiplos pontos de vista.
A história acompanha Rachel, que ainda jovem é separada de sua família. Filha de ricos israelitas, Rachel é sequestrada ainda jovem e levada para o Cairo, onde é vendida para o árabe Crenvosk. Comovidos com o infortúnio de Rachel, Crenvosk e sua esposa, Yarkina, decidem adotá-la. Os três viajam para a cidade de Andrinopla (atual Edirne, na Turquia), onde o casal residia. Crenvosk possui uma companhia de almahs – dançarinas contratadas para entreter festas ou funerais. Pouco depois de sua chegada a Andrinopla, ele recebe um convite do sultão Murah para que sua companhia se apresente em uma grande comemoração promovida pelo soberano.
Como um gesto de gratidão a bondade de seus novos pais, Rachel aceita dançar com as outras almahs. A judia desperta o desejo do emir Aziz-hein, que decide chamar a atenção do sultão para a beleza dela com o intuito que seu senhor entregasse a jovem para ele. A ação tem o sentido contrário. Murah fica encantado por Rachel e decide comprá-la – mesmo após esse gesto, Aziz-hein acalenta a esperança de que a jovem caia em desgraça e Murah a ofereça a seu emir, como já havia feito com outras mulheres. Preocupado com o futuro de Rachel, Crenvosk a leva até uma cabalista, que vaticina uma série de infortúnios para a moça – mas também um salvador.
A judia Rachel contém em seu enredo uma série de elementos góticos, mais precisamente da vertente do gótico conhecida como gótico feminino (Female Gothic). De acordo com Ellen Moers, autora que cunhou o termo em um ensaio de 1974, o gótico feminino designa obras de literatura gótica escritas por mulheres. Moers (1974) considera que o texto feminino expressará o medo que a mulher sente de ser aprisionada dentro de casa e dentro do próprio corpo. Em uma sociedade patriarcal, o corpo da mulher é visto como uma propriedade do homem. Consequentemente, ela acaba por entender que seu corpo não lhe pertence, mas sim ao seu marido e filhos (SÁ, 2018, p. 20). Para melhor entender essa afirmação, basta que lembremos de The Handmaid’s Tale, série que aborda justamente o aprisionamento e controle do corpo feminino.
Para Anne Williams (1995), existem dois gêneros do gótico, um feminino (Female Gothic), e um masculino (Male Gothic). A autora busca determinar o que diferencia ambos e lista uma série de características que distinguem os dois gêneros. Williams (1995, p. 107) conclui que as diferenças entre um e outro advém das diferentes posições culturais que homens e mulheres ocupam. O gótico masculino gira em torno do horror, ele impõe o sobrenatural como realidade e seu desfecho é sempre trágico – os heróis do gótico masculino, caso sobrevivam, emergem dos episódios macabros permanentemente marcados pelo que acabaram de vivenciar, e o próprio final é incerto.
O gótico masculino retrata a personagem feminina como desobediente, fraca e inconstante – essas qualidades, é claro, a colocarão em grande perigo (WILLIAMS, 1995, p. 105). No gótico feminino, a heroína aprende no final que o perigo pode ser superado e que o sobrenatural é fruto da ação humana. (Vale observar que, em A judia Rachel, o sobrenatural nunca é questionado, não sendo fruto de ações humanas, mas de intervenções divinas.) A heroína passa por um renascimento – por vezes, quase literal, uma vez que ela precisa ser salva de um perigo iminente –, ela acorda em um mundo onde o amor é possível e, através do casamento, ela ganha não apenas um novo nome, mas uma nova identidade (WILLIAMS, 1995, p. 103-104). O gótico feminino demanda um final feliz.
A judia Rachel se encaixa na definição de Ellen Moers, além de conter muitos dos elementos listados por Williams. Para começar, temos o tema do confinamento – responsável por gerar uma grande tensão na primeira parte da narrativa. Dentro do harém de Murah, Rachel é constantemente ameaçada. As duas primeiras esposas do sultão sentem inveja pelo modo como ele a trata. Há ainda Aziz-hein, a quem é atribuído o papel de vilão e causador dos infortúnios na vida de Rachel.
Após uma série de intrigas feitas pelas outras esposas, o sultão zanga-se com Rachel. Acompanhamos a tensão aumentar enquanto a personagem aguarda para saber qual será o seu destino. Murah tenciona jogá-la aos tigres de bengala, mas primeiro deseja uma prova da infidelidade da esposa. É Aziz-hein quem a fornece. Como lhe foi negado a possibilidade de possuí-la, ele trama a sua morte (algo ainda comum nos dias atuais). O emir esconde um par de sandálias de ouro nos aposentos de Rachel, alegando que são um presente de um amante. Convencido da culpa da esposa, o sultão a confina a seus aposentos e a condena a morte.
Rachel encontra-se a tal ponto desesperada que encontra-se próxima de enlouquecer, contudo, consegue engendrar um plano para escapar. Dias antes, a jovem ouvira Murah conversando com um ajudante sobre um guerreiro cristão que vinha causando problemas aos árabes. Rachel percebe que ele é o salvador ao qual a cabalista se referia. Com a ajuda de Aimèe, terceira esposa de Murah e única amiga, Rachel consegue enviar um pedido de socorro a ele. É interessante notar que Rachel também é responsável pelo seu próprio salvamento.
Entra em cena o capitão Roberto du Pessier, o Príncipe Negro. Assim como muitos cruzados, Roberto saiu de sua casa, na Normandia, para lutar pela libertação de Jerusalém do domínio muçulmano. Roberto ajuda Rachel a escapar do harém e a abriga no acampamento cristão em Constantinopla. Logo, os dois se apaixonam e se casam. Influenciada pelo amado, Rachel se converte ao cristianismo – passando pelo renascimento ao qual Williams (1995) se refere.
À luz das informações sobre Francisca Senhorinha da Motta Diniz e sobre o gótico feminino, podemos ler A judia Rachel como uma crítica ao confinamento feminino a esfera doméstica e seu alijamento da esfera pública. Depois que se casam, Rachel sempre está ao lado de Roberto, até mesmo quando ele vai lutar nas Cruzadas – em nenhum momento seu corpo é confinado a um aposento para que seja usado como forma de exibir o poder masculino, o inverso do que ocorre no seu primeiro casamento. É possível, então, interpretar o romance como uma forma de reivindicação da participação da mulher na vida social.
Notas
*Aluna do curso de Letras – Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ama Literatura e séries históricas.
As edições de O Sexo Feminino foram disponibilizadas no site da Hemeroteca Digital Brasileira e podem ser acessadas no link: <http://bndigital.bn.br/acervo-digital/sexo-feminino/706868 >.
O romance A judia Rachel pode ser encontrada em versão fac-símile no site Biblioteca Digital de Literaturas de Língua Portuguesa, do Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística (NUPILL), grupo vinculado a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O livro está disponível no link: <https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=76028 >.
Referências
DINIZ, Francisca Senhorinha da Motta; DINIZ, Albertina. A judia Rachel: Scenas orientaes. Rio de Janeiro: Editor — José Assis Clímaco dos Reis, 1886.
MUZART, Zahidé Lupinacci. Sob o signo do gótico: O romance feminino no Brasil, século XIX. Veredas — Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, Santiago de Compostela, nº 10, p. 295–308, 2008.
MOERS, Ellen. Female Gothic: The Monster’s Mother. Disponível em: <https://bit.ly/2GjaEx1>.
SÁ, Daniel Serravalle de. O romance gótico e as mulheres: Questões de política sexual. Itinerários, Araraquara, n. 47, p. 13–23, jul./dez. 2018.
WILLIAMS, Anne. Art of darkness: a poetics of gothic. Chicago: The University of Chicago Press, 1995.
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