Murasaki Shikibu e as Escritoras da Era Heian

O Romance do Genji (MURASAKI, 2008) é considerado o primeiro romance do mundo. Ele foi escrito no período da história japonesa denominado Era Heian (794-1185). Esse período foi marcado por importante desenvolvimento cultural; pelo ápice da corte imperial do Japão; pela criação dos kana, forma de escrita japonesa mais simples que a usada até então; pela influência da cultura chinesa, mas principalmente pela forte literatura feminina.

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Murasaki Shikibu foi uma mulher da nobreza, dama de companhia da Imperatriz Shôshi, na corte imperial japonesa. Sua principal obra, O Romance do Genji, além de ser considerado o primeiro romance da humanidade, também é conhecido como o primeiro romance histórico, ou ainda, o primeiro romance psicológico (ORGADO, 2014). Ele é a obra mais importante da literatura japonesa.

Murasaki, junto com outras mulheres da nobreza, como Sei Shônagon, foram importantes escritoras da época. São autoras de obras clássicas e complexas, em um
momento histórico em que as mulheres eram consideradas inferiores aos homens.

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Estátua de Murasaki Shikibu em Quioto

O Romance do Genji é um livro muito extenso, escrito em prosa, que traz uma mistura de drama, comédia, paródia, sátira, crônicas de costumes e poemas.  É um texto rico em  detalhes e cobre cerca de 80 anos da vida de nobres da corte imperial japonesa. As relações sociais e costumes da época são apresentados de forma detalhada, com cerca de 400 personagens, e, segundo Orgado (2014), com todos os principais sendo aprofundados e explorados psicologicamente. Apesar da extensão do livro, Murasaki consegue manter uma narrativa consistente e elaborada, com a passagem do tempo durante a história ocorrendo de forma realista, com seus personagens envelhecendo na mesma velocidade e permanecendo nas suas posições sociais e personalidades. Murasaki foi à única pessoa a escrever um romance tão complexo como esse, que alcançou enorme popularidade na época, tanto entre homens como entre mulheres, sendo largamente difundido. E que até hoje é um dos livros mais importantes da literatura mundial.

Os conflitos amorosos, familiares, as tramas de traição e de frustração feminina, acarretam, para Orgado (2014, p.53), em “implicações psicológicas, observadas minuciosamente pela autora” da realidade que a cercava. E essa realidade era marcada pela imobilidade feminina.

                  Essa imobilidade é caracterizada pelo enclausuramento das damas dentro de seus aposentos, mantendo contato, muitas vezes, apenas por meio de mensagens com outras pessoas, pois não podiam ser vistas por desconhecidos, só podendo sair dos palácios em raras ocasiões. Sem terem liberdade para irem onde desejassem, passavam seus dias estudando e a espera da visita de algum amante. Segundo Wallace (2005), na escrita detalhada de Murasaki sobre a sociedade, observa-se uma objetificação das mulheres, que vivem em um ambiente estático, competitivo e inseguro, a mercê dos homens ao seu redor. As damas não possuíam muitas opções de vida, podendo apenas permanecer nesse ambiente ou tornarem-se monjas.

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Representação de Murasaki Shikibu em um festival

 

                  Muitas das mulheres nobres que se tornaram damas aprenderam a escrita chinesa (alfabeto erudito, estudado apenas por homens) em segredo, como a própria Murasaki Shikibu. E ao entrarem em contato com a literatura masculina, não conseguiram se identificar com seu conteúdo. Assim, elas utilizaram sua própria forma de escrita e sua imobilidade, para desenvolverem uma extensa e importante literatura, que dominou o período. E, “foi somente nesse período de cem anos que as mulheres detiveram o monopólio das letras, tanto na poesia como na prosa” (GICK, 1989, p. 217), criando uma literatura marcada por relatos sobre a vida na corte. Pois, depois dessa época, a sociedade tornou-se muito mais dura para as mulheres.

 

                  As escritoras da época desenvolveram não só sua própria linguagem, como a partir dela, sua própria literatura — diários, poemas, artigos e romances, textos escritos de mulheres para mulheres, compartilhados e copiados entre as damas da corte. Elas “não mais sofriam em desolado isolamento, pois sua literatura lhes oferecia uma voz coletiva” (FISCHER, 2005). Com essa voz, podiam escrever histórias comuns ao seu ambiente e podiam dividir os sofrimentos da vida na corte, por meio de uma escrita fácil e acessível. Não com a escrita dos caracteres chineses usados por homens, que muitas aprendiam escondidas, mas com o kana, um alfabeto mais simples, de uso exclusivamente feminino na época, e usado por essas mulheres para contarem suas histórias umas para as outras.

                  Portanto, a situação imóvel, de opressão feminina, foi transformada por elas em horas de estudo e escrita, o que contribuiu para o controle da literatura da Era Heian por escritoras mulheres. Segundo Fischer (2005), elas podiam não saber o que acontecia do lado de fora dos palácios, mas podiam ao menos registrar o que acontecia internamente, em suas “prisões de bambu e seda”.

 

Referências:

FISCHER, R. S. Histórias da literatura. Tradução de Claudia Freire. São Paulo:  Unesp, 2005.

 

GICK, P. A mulher e a literatura.  Organon, 1989. v. 16, n. 16, p. 217-221. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/organon/article/view/39505&gt;. Acesso em: 20 de setembro de 2016.

 

ORGADO, G. Literatura Traduzida de Murasaki Shikibu: análise paratextual em Genji Monogatari. 2014. 229 f. Curso de Pós-graduação em Estudos da Tradução, Centro de Comunicação e Expressão, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/129252&gt;. Acesso em: 20 set. 2016.

 

WALLACE, R. Objects of Discourse: memoirs by women of Heian Japan. Ann Arbor: Center for Japanese Studies, 2005.

 

Escrito por:

20819069_1090133864452900_2742526357892184227_o.jpg   Thaisy dos Santos Quinteiro, 22 anos, estudante de Letras, Bacharelado Português – Japonês na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

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