Nascida em 1941, foi uma poeta brasileira. Viveu por quase 30 anos internada na Colônia Juliano Moreira, onde faleceu em 1997.
“Estar internada é ficar todo dia presa
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no portão
Eu estou aqui há vinte cinco anos ou mais “
Stela usava uma forma de poesia oral para se comunicar. Na década de 80, foi convidada pela artista plástica Nelly Gutmacher para montar um ateliê na Colônia.
As falas poéticas de Stela do Patrocínio foram gravadas em fita cassete e, anos depois, transcritas, organizadas e publicadas em 2001, pela escritoraViviane Mosé no livro “Reino dos bichos e dos animais é o meu nome”.
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
*
Olha quantos estão comigo
Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Para poder estar comigo
*
Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro
Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria
*
Eu não queria me formar
Não queria nascer
Não queria formar forma humana
Carne humana e matéria humana
Não queria saber de viver
Não queria saber da vida
Eu não tive querer
Nem vontade para essas coisas
E até hoje eu não tenho querer
nem vontade para essas coisas
*
Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles
*
“eu não sou da casa, eu não sou da família, não sou do mundo, não sou de nenhuma das cabeças e de nenhum dos corpos.
não sou do ar, do espaço vazio do tempo e dos gases.
se anda no ar no espaço vazio e nos gases, como ar espaço vazio tempo e gases
não como forma humana, matéria humana e carne humana pesada.”
*
os poemas abaixo foram retirados do blog Vodca Barata:
https://vodcabarata.blogspot.com.br/search/label/poesia
pág. 141
Eu já falei em excesso em acesso muito e demais
Declarei expliquei esclareci tudo
Falei tudo que tinha pra falar
Não tenho mais assunto mais conversa fiada
Já falei tudo
Não tenho mais voz pra cantar também
Porque eu já cantei tudo que tinha que cantar
Eu cresci engordei tô forte
Tô mais forte que um casal
Que a família que o exército que o mundo que a casa
Sou mais velha do que todos na família
pág. 143
Me transformei com esse falatório todinho
Num homem feio
Mas tão feio
Que não me aguento mais de tanta feiúra
Porque quem vence o belo é o belo
Quem vence a saúde é outra saúde
Quem vence o normal é outro normal
Quem vence um cientista é outro cientista
pág. 121
Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade de querer
pág. 122
Eu não tenho coragem de enfrentar nada
Eu tenho que enfrentar a violência
A brutalidade a grosseria
E ir à luta pelo pão de cada dia
pág. 123
Eu sou mundial pobre
Tudo pra mim é merda durinha à vontade
Até ser contaminada e contaminada até ser merda pura
E é merda fezes excremento bosta cocô
Bicha lombriga verme pus ferida vômito escarro porra
Diarréia disenteria água de bosta e caganeira
pág. 125
Eu não sei o que fazer da minha vida
Por isso eu estou triste
E fico vendo tudo em cima da minha cabeça
Em cima do meu corpo
Toda hora me procurando me procurando
E eu já carregada de relação sexual
Já fodida
Botando o mundo inteiro pra gozar e sem nenhum gozo
pág. 127
Você já está me comendo tanto com os olhos
Que eu já não tenho de onde tirar força
Pra te alimentar
pág. 130
É quadrilha exército povoado
Bloco médico escoteiros e bandeirantes
Isso é família porque família é família
Tudo é família
Você não é família?
Uma família é uma reunião uma reunião
Uma família pra mim é uma reunião de médicos e cientistas
Minha família era a família que se garantia
E sumiu de repente desapareceu mudou
Mudou não sei se foi porque mudaram as vestimentas
A família toda com as mesmas roupas
Com roupas iguais
E aí mudou as roupas
Pra poder ficar mais difícil a diferença entre nós
Escoteiros quem vence são bandeirantes
Bandeirantes quem domina e vence são escoteiros
Família é quadrilha exército povoado
Bloco médico escoteiros bandeirantes
Corpo de bombeiros quadrilha exército
Povoado bloco médico corpo de bombeiros
pág. 131
Se eu pegar a família toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Meter tudo dentro da lata do lixo e fazer um aborto
Será que acontece alguma coisa comigo?
Vão me fazer alguma coisa?
Se eu pegar durante a noite novamente a família
toda de cabeça pra baixo
E perna pra cima
Jogar lá de dentro pra fora
Lá de cima pra baixo
Será que ainda vai continuar acontecendo
alguma coisa comigo?
pág. 133
Me ensinaram a morder chupar roer lamber e dar dentadas
pág. 109
A vida a gente tem que aceitar como a vida é
E não como a gente quer
Se fosse como eu queria
Eu não queria ver ninguém no mundo
Não queria ver ninguém na casa
Queria estar toda hora comendo bebendo fumando
Assim é que eu queria que fosse meu gosto
Mas como eu pulei muro despulei muro
Pulei portão despulei portão
Pulei lá de cima pro lado de fora
Do lado de fora pro lado de dentro
Quer dizer que eu…
Não é como eu gosto
Eu não esperava pular janela despular janela
pág. 113
Lá no portão eu disse
Quero pastar à vontade que nem camelo
Pra ver como fica o resultado da história da vida de Cristo
pág. 116
Depois do entre a vida e a morte
Depois dos mortos
Depois dos bichos e dos animais
Só fica a vontade como bicho e como animal
pág. 118
Meu nome verdadeiro é caixão enterro
Cemitério defunto cadáver
Esqueleto humano asilo de velhos
Hospital de tudo quanto é doença
Hospício
Mundo dos bichos e dos animais
Os animais: dinossauro camelo onça
Tigre leão dinossauro
Macacos girafas tartarugas
Reino dos bichos e dos animais é o meu nome
Jardim Zoológico Quinta da Boa Vista
Um verdadeiro jardim zoológico
Quinta da Boa Vista
pág. 97
No céu
Me disseram que deus mora no céu
No céu na terra em toda parte
Mas não sei se ele está em mim
Ou se ele não está
Eu sei que estou passando mal de boca
Passando muita fome comendo mal
E passando mal de boca
Me alimentando mal comendo mal
Passando muita fome
Sofrendo da cabeça
Sofrendo como doente mental
E no presídio de mulheres
Cumprindo prisão perpétua
Correndo um processo
Sendo processada
pág. 98
Eles disseram pra mim
Você não pode passar sem um homem
Sem mulher sem criança sem os bichos sem os animais
Mas alimentação e super-alimentação você
também não pode ter
pág. 100
Só depois da relação sexual é que eu posso
carregar tudo pela língua e pela boca
pág. 101
Tinha terra preta no chão
Um homem foi lá e disse
Deita aí no chão pra mim te foder
Eu disse não
Vou me embora daqui
Aí eu saí de lá e vim andando
Ainda não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não tinha esse prédio
Não tinha essa portaria
Não via tinta azul pelas paredes
A parede ainda não era pintada de azul
pág. 102
Eu fui agarrada quando eu estava sozinha
Não conhecia ninguém não conhecia nada
Não via ninguém não via nada
Nada de cabeças de corpos
Nada de casa nada de mundo
Eu não conhecia nada eu era ignorante
Depois que eu fui agarrada pra relação sexual e pra foder
Depois, só depois eu comecei a ter noção e ficar sabendo
Antes eu não fazia nada
Não dependia de nada
Não fazia nada
Era como uma parasita
Uma paralisia um câncer
pág. 90
Eu vejo o mundo e a família
O mundo e a família
A família que vive no mundo
E vive na casa que está sempre no mundo
E que está sempre na casa…
E a Dra. Elisabeth disse assim pra mim
E você queria ver mais do que isso pra quê?
E você queria ver mais do que isso pra quê?
pág. 92
É a mesma mulher é o mesmo homem
É a mesma criança é o mesmo bicho
É o mesmo animal é o mesmo espírito
É a mesma alma é o mesmo Deus
É a mesma Nossa Senhora
É o mesmo Menino Jesus no Tempo
pág. 79
Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam pra nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles
pág. 82
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puro, assim, ó, espaço vazio, ó
Eu não tinha formação
Não tinha formatura
Não tinha onde fazer cabeça
Fazer braço, fazer corpo
Fazer orelha, fazer nariz
Fazer céu da boca, falar falatório
Fazer músculo, fazer dente
Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
Fazer cabeça, pensar em alguma coisa
Ser útil, inteligente, ser raciocínio
Não tinha onde tirar nada disso
Eu era espaço vazio puro
pág. 83
Eu não sei como pode formar uma cabeça
Um olho enxergando, nariz respirando
Boca com dentes
Orelhas ouvindo vozes
Pele, carne ossos
Altura, largura, força
Pra ter força
O que é preciso fazer?
É preciso tomar vitamina
pág. 62
Não trabalho com a inteligência
Nem com o pensamento
Mas também não uso a ignorância
pág. 63
Eu sou seguida acompanhada imitada
assemelhada
Tomada conta fiscalizada examinada revistada
Tem esses que são igualzinhos a mim
Tem esses que se vestem se calçam igual a mim
Mas que são diferentes da diferença entre nós
É tudo bom e nada presta
pág. 64
Dias semanas meses o ano inteiro
Minuto segundo toda hora
Dia tarde a noite inteira
Querem me matar
Só querem me matar
Porque dizem que eu tenho a vida fácil
Tenho vida difícil
Então porque eu tenho vida fácil tenho vida difícil
Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo
Sem facilidade com dificuldade
Por isso é que eles querem me matar
pág. 66
Eu sou Stela do Patrocínio
Bem patrocinada
Estou sentada numa cadeira
Pegada numa mesa nega preta e crioula
Eu sou uma nega preta e crioula
Que a Ana me disse
pág. 68
Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca
pág. 69
Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro
Estudar fora da cabeça
Funcionar em cima da mesa
Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria
pág. 73
Meu passado foi um passado de areia
Em mar de Copacabana
Cachoeira de Paulo Afonso
Bem dentro da Lagoa Rodrigo de Freitas
No Rio de Janeiro
O futuro eu queria
Ser feliz
E encontrar a felicidade sempre
E não perder nunca o gosto de estar gostando
O que eu penso em fazer da minha vida
É encontrar a felicidade, ser feliz
Ficar gostando e não perder o gosto
Ser feliz
Encontrar a felicidade
E não perder o gosto de estar gostando
pág. 74
Eu sei que o meu passado
Eu prestei bem atenção como foi
O presente
Eu continuo prestando atenção como é
Mas o futuro
Eu não sei como vai ser
É difícil de eu descobrir
Como vai ser meu futuro
pág. 51
Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
O hospital parece uma casa
O hospital é um hospital
pág. 52
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
pág. 54
O remédio que eu tomo me faz passar mal
E eu não gosto de tomar remédio
passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico
cambaleando
Quase levo um tombo
E se eu levo um tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair
pág. 57
Sinto muita sede muito sono muita preguiça
muito cansaço
Fico na malandragem na vagabundagem como marginal
E como malandra como marginal como malandra
na malandragem
Na vagabundagem e na vadiagem como marginal
Mais poemas em:
http://www.confrariadovento.com/revista/numero11/phantascopia.htm
&
Dirigido por Marcio de Andrade, o curta “Stela do Patrocínio: a mulher que falava coisas”: http://tvpuc.vrc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=5&infoid=539
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