Toda mulher é meio Leila Diniz

Por Fernanda Lopes:

 

No verão, ver as mulheres – muitas delas grávidas – de biquíni na praia, deixando seus corpos à mostra, é uma coisa normal, né? Pois por muito tempo não foi. Exibir orgulhosamente a barriga de grávida em público era um absurdo sem precedentes. Até que ela chegou e mudou tudo.

Leila Roque Diniz nasceu no dia 25 de março de 1945 em Niterói, Rio de Janeiro. Sua infância e adolescência em família foram um tanto turbulentas. O pai era do partido comunista, a mãe pegou tuberculose e foi internada em um sanatório quando Leila era apenas um bebê. Ela foi criada por uma madrasta que fazia diferença no tratamento que dava a seus filhos legítimos e a seus enteados. Leila cresceu no meio dessa opressão e, ao mesmo tempo, da liberdade de não ter valores religiosos e materiais fortes em sua casa e de ver o pai e a madrasta trocando carinhos na frente dos filhos.

Aos 10 anos, ela descobriu que sua mãe na verdade não era aquela com quem ela vivia. Na adolescência, Leila mudou de casa frequentemente. Chegou a morar com a mãe biológica – relação que não deu muito certo; a mãe era beata – , com uma tia e na casa de amigas.

Ainda menina, com cerca de 14, 15 anos, Leila começou a frequentar bares da zona sul do Rio, convivendo com a elite intelectual da época. O poeta Manuel Bandeira, por exemplo, era um de seus melhores amigos.

No colégio, faltava muito às aulas e tirava notas de medianas a baixas. Não conseguia adaptar seu comportamento ao sistema escolar rígido da época. Ela fez um curso no Ministério da Educação e se tornou professora de educação infantil no subúrbio carioca.

Claro que Leila não foi uma professora convencional. Aliás, quando foi chamada de “professorinha” pelo jornal “O Pasquim”, ela foi rápida ao retrucar: “Professorinha uma porra! Eu fui professora”. Leila contava histórias para as crianças, fazia teatrinhos, misturava os lanches dos alunos, falava “escatologias” como bunda e cocô na classe e não usava a lousa e a mesa da professora, para poder se colocar como igual aos alunos.

Leila trabalhou em apenas duas escolas. Em 1963, deixou que uma aluna com síndrome de Down entrasse em sua turma. A diretora era contra, alegando pressão das mães dos outros alunos. Leila não concordava com essa posição e, quando a menina saiu da escola, ela também foi embora e nunca mais voltou a dar aulas.

A arte não demorou muito para entrar na vida de Leila. Aos 17 anos, ela conheceu o cineasta Domingos de Oliveira e passou a trabalhar como atriz. O relacionamento com Domingos logo virou um casamento. Eles ficaram juntos por três anos, de 1962 a 1965.

Leila estreou no teatro em 1964, literalmente empurrada ao palco por Domingos. Ela admitiu que achava “teatro um saco” e não gostava de fazer a mesma coisa toda noite. Foi, então, tentar a carreira no cinema e na TV.

Em “Todas as Mulheres do Mundo”, Leila viveu a personagem mais importante de sua vida. O filme, escrito e dirigido por Domingos de Oliveira, contava a história dos dois, levantando questões sobre o amor (livre ou não) e sobre o as novas formas de relacionamento dos anos 1960. Maria Alice, a personagem principal, era totalmente baseada em Leila: professora, moderna, bem resolvida,  não se deixava controlar e buscava seu prazer e sua felicidade. Alguns diálogos eram até transcrições de frases da própria atriz. O filme foi um sucesso e rendeu o prêmio de Melhor Atriz no Instituto Nacional de Cinema para Leila.

Na TV ela também fez sucesso.  Foi a estrela da primeira novela da Globo, “Ilusões Perdidas” (1965) e fez amizade com atores e técnicos da emissora, de ir até tomar pinga no boteco pé sujo por perto. Detalhe: vestida com os figurinos das cenas. Outras novelas das quais participou, como “Paixão de Outono” e “O Direito dos Filhos” (1968), da Excelsior, a alçaram à fama nacional.

O reconhecimento rendeu muita atenção da imprensa à Leila, e as entrevistas que ela dava eram marcantes pela sinceridade, espontaneidade e verborragia. Leila era desinibida, desapegada e despojada de todos os tabus que aprisionavam as mulheres da época. Falava palavrões, falava de sexo e falava livremente sobre seus pensamentos e sentimentos.

Uma entrevista específica que a atriz deu para o jornal “O Pasquim”  em 1969 foi um divisor de águas em sua vida e na história das mulheres no Brasil. Leila se mostrava livre, independente e feliz sem censura, sem discurso, sem ódio contra os homens.

Entre  as frases ditas por ela, estão “Você pode muito bem amar uma pessoa e ir para cama com outra. Isso já aconteceu comigo” e “Esse negócio de idade é bobagem. Você deixa de ser virgem quando tem vontade”.  Além disso, toda a entrevista foi pontuada com 72 asteriscos, indicando todas as vezes que Leila soltava um palavrão.  “Eu acho o palavrão gostoso e é uma coisa natural. Virou verdade em mim”.

Declarações como estas incendiaram a sociedade. As fitas da entrevista começaram a ser replicadas e se espalharam pelo país. Esta foi a edição do jornal que mais vendeu exemplares em sua história.

Mas a entrevista, tão libertadora para a época, foi prejudicial a Leila. O preconceito não era velado: era dito em sua cara nas ruas, nos meios de comunicação. Ela foi extremamente julgada e criticada, chegou a emagrecer onze quilos por sofrimento.

As palavras – e palavrões – de Leila foram o estopim para a implantação da censura prévia na imprensa, também conhecida como Decreto Leila Diniz. De acordo com o decreto-lei número 1077, não seriam toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes, visando proteger a família e os valores éticos.

Leila passou a ser perseguida pela ditadura. Não conseguia mais emprego na TV – os colegas das emissoras a chamavam de “puta”. Na Globo, ela ouviu que, por razões morais, seu contrato não seria renovado. A autora Janete Clair deixou seu desprezo mais evidente: achava que Leila tinha criado para si uma imagem de “vagabunda”.

A participação dela na TV em 1970 se deu não como atriz, mas como jurada no programa de Flávio Cavalcanti. Teve ordem de prisão decretada e militares foram buscá-la no estúdio. Mas Flávio armou um esquema e Leila conseguiu fugir, ficando escondida na casa do animador em Petrópolis por um mês.  Ela só conseguiu ser absolvida da ordem de prisão e da perseguição do governo quando assinou um documento prometendo não falar mais seus “imorais” palavrões.

Leila não abandonou a vida artística. Ela teve muito sucesso como a última vedete do antigo teatro de revista, protagonizando a peça “Tem Banana na Banda”, com textos de Millôr Fernandes, José Wilker, Oduvaldo Viana Filho e Luiz Carlos Maciel. As interpretações erradas de sua conduta, no entanto, continuavam. Ela recebia convites para programas, mas sempre negava. Quando um fazendeiro foi rejeitado e alegou que ela “dava para todo mundo”, Leila prontamente respondeu: “Eu posso até dar para todos, mas não dou para qualquer um”. No Carnaval de 1971, Leila foi eleita a Rainha da Banda de Ipanema.

Em 1971, com o moçambicano Ruy Guerra, ela engravidou de sua única filha. Uma amiga de infância de Leila que trabalhava na revista “Claudia” sugeriu uma matéria com a atriz gestante. Na sessão de fotos, Leila aparecia de biquíni, dentro do mar na ilha de Paquetá, com sua barriga de cinco meses de fora. Foi a primeira mulher a aparecer publicamente grávida e de biquíni – ainda que, devido ao conservadorismo da revista, em uma foto de apenas 6cm.

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As mulheres daquela época jamais exibiam suas gestações em público, desnudamente. Era considerado ofensivo. Mas Leila fazia o que tinha vontade. Sempre amou a praia e ouviu de sua médica que fazia bem pegar sol na barriga. Não teve dúvida e nem vergonha.

O que hoje parece uma atitude banal na época foi um frisson. As pessoas corriam atrás de Leila para ver esta “cena” e havia quem fizesse questão de xingá-la nessa situação. Leila sofreu mais uma vez com o julgamento.

Janaína nasceu no dia 19 de novembro de 1971. Leila teve uma cesariana difícil, os pontos inflamaram, teve abcesso de parede. Só teve alta quinze dias depois. Em entrevista mais uma vez ao “Pasquim”, ela afirmava que achava gravidez um troço maravilhoso e que não tinha preferência por menino ou menina. Mas confessava que achava “as meninas mais bacanas. As mulheres tiveram que conquistar as coisas, fizeram um trabalho grande para se libertar”.

As coisas no ramo do cinema e da TV não andavam nada fáceis para Leila, que acabou abrindo uma loja de roupas indianas, chamada Doze, com sua amiga Vera Barreto Leite. Não que Leila fosse muito ligada em moda. “Estou pouco preocupada com isso. Às vezes sou cafona, outras sou maravilhosa. Depende do dia, da hora”, disse em uma entrevista. Mas era simpática, lidava muito bem com as freguesas – entre elas, Elis Regina e Gal Costa – e precisava de um sustento.

A maternidade fez com que Leila se aquietasse, ficasse interessada mais em sua filha do que nas festas e nos barzinhos de Ipanema. Já não estava mais com o pai da menina e se mantinha com o lucro da loja Doze. Além de mostrar a barriga, ela também chocou e inovou ao amamentar Janaína ao vivo na TV. Era chamada esporadicamente para ser jurada no programa de Sílvio Santos, e em uma dessas ocasiões tirou o seio do sutiã para amamentar a criança no estúdio mesmo.

Leila fez testes para a novela “O Rebu” na Globo, no que achou que seria seu retorno às novelas. No entanto, seu nome foi vetado na emissora. Em 1972, magoada com a situação, decidiu acompanhar seu amigo Luiz Carlos Lacerda em uma viagem à Austrália. Eles foram participar de festival de cinema com o filme “Mãos Vazias” (1970). Leila adorou o evento e o país.

Várias escalas estavam planejadas em outros países depois da estadia na Austrália, mas Leila ansiava voltar logo ao Brasil, estava morrendo de saudade de Janaína. Decidiu voltar sozinha, mas o trajeto foi tragicamente interrompido. Em uma conexão, o avião em que voava caiu quando passava por Nova Delhi ,na Índia. 82 pessoas morreram. Leila estava entre elas.  Tinha 27 anos.

Sua filha Janaína tinha apenas 6 meses quando o acidente aconteceu. Marieta Severo e Chico Buarque, que eram amigos de Leila, cuidaram da menina até que o pai tivesse condições para tomar conta dela.

Foi encontrado, em meio aos escombros, o diário que ela mantinha. Sua última frase foi “Está acontecendo alguma coisa muito es…”.

Leila manteve diários durante a maior parte de sua vida, e suas reflexões particulares diziam muito sobre a mulher que ela foi e sobre a inspiração que ela se tornou para tantas mulheres das gerações que a seguiram.

Quando questionada por um repórter do jornal “Diário de São Paulo” sobre por que causa ela lutava, a resposta de Leila foi a seguinte:

Em primeiro lugar pela posição da mulher na sociedade. Isto quer dizer que luto por mim mesma. Em segundo lugar, luto por minha luta diária. Brigo por tanta coisa que nem sei.

 

Já dizia Rita Lee: Toda mulher é meio Leila Diniz.


 

fernanda lopes

 

*Esse texto foi enviado com uma contribuição e se você também quiser contribuir com pesquisas e matérias, é só mandar um email para: contato@asminanahistoria.com.br

 

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